5 de novembro de 2011

A música não pode ser "arrastada"... pode?!

O gosto musical de cada indivíduo depende de sua experiência, vivência e preconceitos e aberturas das diferentes estéticas musicais a que se é exposto.  Eu, por exemplo, poderia ter prazer de ouvir batucadas (ou músicas) tribais, como as usadas na capoeira... mas não tenho, não gosto.  Se passar a ouvir diferentes músicas de um mesmo "estilo" a tendência natural é a assimilação.  As emoções contam também, podendo, opostamente, produzir uma repulsa, mas isso somente se houver algum tipo de preconceito consciente ou inconsciente sobre a entrada em questão.  Assim, admito que não gosto nem pretendo gostar de músicas utilizadas em rituais afro-religiosos, por opção.  Além desse aspecto, existe os efeitos fisiológicos da energia sonora ritmada no corpo humano (novamente indico o link: "os efeitos da música rock").

Mas hoje pretendo abordar sucintamente o aspecto de cinemática musical.  Junto com a dinâmica e todos os detalhes que enriquecem a execução (conforme visto no último post), a expressão musical é necessária para impedir o "arrasto" de uma música lenta.  Cansei de ouvir comentários como: "cuidado para não associar o fraco com o lento", e isso é uma verdade... mas é relativa.  É, eu diria, uma associação desejável de fraco com lento e forte com rápido, que provoca um certo tipo de efeito.  Essa associação existe na linguagem verbal rotineira, quando falamos energicamente de modo mais alto e rápido que o normal ou secretamente de modo baixo e lento.  Assim, o temido "arrasto", segundo minhas análises, consiste na imprecisão do tempo e no canto desatencioso, geralmente fazendo com que haja vozes ou instrumentos com defasagens.  Os pianistas geralmente buscam acelerar, executando adiantadamente as entradas.  Toda essa falta de sincronismo produz um mal estar chamado, por muitos, de "música arrastada".

Vou dar um exemplo de música reflexiva, do tipo que é e deve ser empregada em consonância com as liturgias religiosas: Deus o Mundo Amou (da Crucifixão, de Steiner).
Excolhi esta versão em língua inglesa porque a qualidade é fundamental para demonstrar o que estou dizendo.  Repare o volume do piano (fraco).  Fraco é fraco e forte é forte, como se espera.  Alguns compositores costumam inventar ppppp ou fffff para compensar a falta de sensibilidade dos executantes.  Mas se o pp, que é pianíssimo e significa muitíssimo fraco, não for realmente executado de modo fraco (o mais possível), na prática costuma não adiantar ter mais letras intensificando a necessidade de executar com leveza.  A ideia do compositor é deixar claro que ele quer algo quase inaudível.  Mas como isso depende da sensibilidade, frequentemente ouvimos o ppppp como um simples mp (meio fraco).  Repare que na música acima o início da execução parece mais pp que p, e é o modo como gosto de ouvir.  A letra é bíblica (João 3:16) e a expressão que a música passa é que o amor de Deus foi tão grande que é como algo que cresce, mantém a calma, transmite segurança e não tem limites.  Mesmo sem a letra a música já diria isso.  Experimente ouvir.

Outra música fantástica e lenta é o Sanctus da Missa de Santa Cecília, de Gounod (video abaixo).  A letra é simples e diz: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos; a terra e o céu estão plenos da Tua glória; hosanas nas alturas; bendito o que vem em nome do Senhor; hosana nas alturas.  Existem interpretações mais lentas (que eu, inclusive, gosto mais) que são ainda mais solenes.  Mas a música em si já tem uma expressão sinalizada e intuitiva grandiosa.  É uma música grandiosa que fala de um Deus mais grandioso ainda e dá muito bem o recado.  Ouça, sem pressa.


Veja outra interpretação, tentando reparar os detalhes e as diferenças, inclusive as dinâmicas de cada frase musical.  Repare na parte do ff do coral, onde os crescentes e piano subito fazem um contraste absolutamente incrível.


Uma outra música totalmente diferente que tem um potencial muito grande para se beneficiar da solenidade das músicas discutidas acima é a "Creio em Deus", de Nabor Nunes.  Na execução abaixo, o Coro do Seminário batista (STSB) faz uma bela apresentação.  No intuito de aperfeiçoar a execução e em consonância com o que tenho dito, se eu estivesse na regência, a percussão seria eliminada, o andamento seria mais livre e (muito) mais lento, de modo que a graça estaria nos detalhes da dinâmica (forte e fraco) de cada frase.  A liberdade seria acelerar em certas partes, como no f indicado na partitura para a parte "mesmo que a vida não seja tão calma eu creio em Deus", porque se a vida está turbulenta, eu faria como um desabafo, transformaria em ff; em seguida eu faria algo mais reflexivo, reduzindo um pouco a intensidade (e talvez um pouco o andamento) quando a frase prossegue: "mesmo que o ódio destrua o mundo", voltando a forte: "eu creio em Deus".  Em seguida uma redução até falar do sombrio, com pesar, fraco: "eu creio em Deus, sim creio, mesmo sendo sombrio aqui; mesmo havendo maldade eu Creio em Deus".  A beleza desta música é a possibilidade de expressar grandes e diferentes emoções, tornando a música muito agradável.  Assim eu, portanto, modificaria a execução, que não está ruim, mas que, para mim, ainda pode melhorar.


Finalizo sugerindo a busca de erudição.  Um erudito (o que no dicionário Michaelis online significa: "que tem instrução vasta e variada, que revela muito saber") na música é aquele que estuda e se aprofunda em técnicas e teorias relacionadas a música.  Vamos nos aprofundar?!!

Um comentário:

  1. Oi, Fred,
    Você podia criar uns vídeos mostrando as diferenças de pp a ff combinados com lento e rapido, etc. Por exemplo, toca um trecho no piano ou canta, coloca as partituras como no 1º video que você anexou.
    No mais, muito interessante seu artigo. O conhecimento (bem usado) é muito melhor que a ignorância. E o seu texto tira da ignorância (musical) quem o lê. Continue escrevendo e ensinando. Isso faz muita diferença.

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